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O REDESENHO, A LUZ DOS DIREITOS HUMANOS, DO PAPEL DOS APOIADORES NAS MEDIDAS DE SUPORTE AO EXERCICIO DA CAPACIDADE CIVIL PELAS PESSOAS COM DEFICIENCIA NO BRASIL https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/o-redesenho-a-luz-dos-direitos-humanos-do-papel-dos-apoiadores-nas-medidas-de-suporte-ao-exercicio-da-capacidade-civil-pelas-pessoas-com-deficiencia-no-brasil/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/o-redesenho-a-luz-dos-direitos-humanos-do-papel-dos-apoiadores-nas-medidas-de-suporte-ao-exercicio-da-capacidade-civil-pelas-pessoas-com-deficiencia-no-brasil/#respond Tue, 11 Jan 2022 20:57:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=39 Silvia Leticia de ALMEIDA
Marcelo FIGUEIREDO

Argumenta
Journal Law

n. 35 p. 283-306 jul/dez 2021

Como citar este artigo:
ALMEIDA, Silvia, FIGUEIREDO, Marcelo. O redesenho, à luz dos direitos humanos, do papel dos apoiadores nas medidas de suporte ao exercício da capacidade civil pelas pessoas com deficiência no Brasil. Argumenta Journal Law, Jacarezinho – PR, Brasil, n. 35, 2021, p. 283-306.
Data da submissão: 02/11/2020 Data da aprovação: 20/02/2021

SUMÁRIO:
1. Introdução; 2. A compreensão da pessoa com deficiência em seu contexto social; 3. A capacidade legal das pessoas com deficiência; 4. As medidas de apoio ao exercício da capacidade das pessoas com deficiência; 5. Conclusão: os desafios impostos aos apoiadores; Referências.

RESUMO:
Objetiva-se com o presente artigo uma análise da capacidade civil da pessoa com deficiência, ob- servadas as alterações introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro pela Convenção de Nova York e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, especial- mente no tocante aos relevantes desafios impostos aos apoiadores.

ABSTRACT:
This article aims to analyze the civil capacity of persons with disabil- ities, in the light of the changes introduced in the Brazilian legal system by the New York Convention and the Brazilian Statute of Persons with Disabilities, particularly with regard to the relevant challenges imposed on supporters.

RESUMEN:
El objetivo del presente artículo es hacer un análisis de la capaci- dad civil de las personas en situación de discapacidad, considerando los cambios introducidos en el sistema legal brasileño por la Convención de Nueva York y por el Estatuto de la Persona en Situación de Discapacidad, especialmente con respecto a los desafíos relevantes que se plantean a los apoyadores.

PALAVRAS-CHAVE:
Pessoa com deficiência; Capacidade civil; Curatela; Tomada de deci- são apoiada; Apoiadores.

KEYWORDS:
Persons with disabilities; Civil capacity; Curatorship; Supported de- cision-making; Supporters.

PALABRAS CLAVE:
Persona en situación de discapacidad; Capacidad civil; Curatela; Toma de decisión apoyada; Apoyadores.

1. INTRODUÇÃO
A capacidade legal das pessoas com deficiência sofreu relevantes transformações no ordenamento jurídico brasileiro, assim como as medi- das de apoio ao seu exercício. Rompendo com um passado de invisibili- dade das pessoas com deficiência, um novo modelo é inaugurado, dentro de uma proposta de inclusão, promoção da autonomia e reconhecimento dos seus direitos humanos.

O presente artigo se propõe a analisar tais mudanças, promovidas especialmente pela Convenção de Nova York1 e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência2, inseridas em um novo paradigma de compreensão dos impedimentos das pessoas com deficiência em interface com as barreiras impostas pela sociedade, que dificultam ou impedem o exercício de seus direitos.

Sob esse prisma, será analisado o papel dos apoiadores e as dificul- dades cotidianas na construção do modelo emancipatório disposto pelo plexo normativo vigente.

2. A COMPREENSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM SEU CONTEXTO SOCIAL
Como resultado de um movimento que teve início nos anos 80 do século passado, a abordagem do tema da pessoa com deficiência sofreu profundas alterações nas duas últimas décadas, com a instauração de um novo paradigma. Em períodos anteriores, porém, a ausência de normati- vidade adequada, sem o reconhecimento de seus direitos humanos, impôs às pessoas com deficiência situações de rejeição e exclusão.

As Constituições brasileiras anteriores a 1.988, praticamente não abordaram o tema e, pior, tiveram positivada a discriminação em face das pessoas com deficiência, ao suspenderem seus direitos, justamente em razão da sua condição. A Constituição outorgada em 1.824, estabelecia no inciso I do artigo 8o a suspensão do exercício dos direitos políticos por incapacidade física ou moral. Na Constituição de 1.891, a restrição às pessoas com deficiência era disposta no §1o do artigo 71, que determinava a suspensão dos direitos de cidadão brasileiro por incapacidade física ou moral. A Constituição Federal de 1.934 trouxe outra abordagem do tema, mas ainda no sentido de restringir direitos das pessoas com deficiência: conforme a alínea a do artigo 110 daquela Constituição, os direitos políti- cos eram suspensos por incapacidade civil absoluta. Como a Constituição de 1.934 não trazia o conceito de incapacidade civil absoluta, sua com- preensão remetia ao Código Civil de 1.916, que estabelecia que, dentre outros, eram absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os loucos de todo o gênero e os surdos-mudos que não pudes- sem exprimir a sua vontade3. Novamente, e ainda durante a vigência do Código Civil de 1.916, a Constituição Federal de 1.937 suspendia os di- reitos políticos das pessoas absolutamente incapazes, em seu artigo 118, alínea a, restrição reproduzida na Constituição Federal de 1.946, em seu artigo 135, §1o, inciso I, na Constituição Federal de 1.967, no artigo 144, inciso I, alínea a e na Emenda Constitucional no 01 de 1.969, no artigo 149, §2o, alínea ‘b’.

Apenas na Emenda Constitucional no 12, de 1.978, o tema teve ade- quada atenção. Destinada a assegura(r) aos Deficientes a melhoria de sua condição social e econômica, a Emenda tratou em seu artigo único sobre educação, assistência e reabilitação, reinserção na vida econômi- ca e social, proibição de discriminação e acessibilidade das pessoas com deficiência. Apesar da redação enxuta, representou indiscutível avanço, minguado, porém, pelo contexto histórico de desvalorização generalizada dos direitos fundamentais pela Ditadura Militar4.

O artigo 15, inciso II, da Constituição Federal de 1.988 manteve o entendimento acerca da suspensão dos direitos políticos nos casos de in- capacidade civil absoluta. Como aqui já se asseverou, o Código Civil de 1.916 considerava absolutamente incapazes os loucos de todo gênero e os surdos-mudos que não pudessem exprimir a sua vontade. Ocorre que, em 2.002, na vigência da Constituição de 1.988, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro um novo Código Civil5, que abordou a questão da in- capacidade absoluta em seu artigo 3o, estabelecendo, à época, que, dentre outros, eram absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos e os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade. Essa discipli- na da incapacidade civil absoluta (e da suspensão dos direitos políticos, por consequência6) vigorou na legislação infraconstitucional até o ano de 2.015, quando sobreveio o Estatuto da Pessoa com Deficiência, cuja profunda alteração na abordagem do tema será tratada adiante. Eis aqui um breve histórico do tratamento dado pelas Constituições brasileiras ao tema da pessoa com deficiência.

Conforme aduzido, a década de 80 do século passado foi fértil no debate sobre a pessoa com deficiência, debate este conduzido especial- mente pelas próprias pessoas com deficiência, sob o lema “nada sobre nós sem nós”. O ano de 1.981 foi considerado o Ano Internacional das Pessoas Deficientes pelas Nações Unidas e o período de 1.983 a 1.992 considerado a Década Internacional das Pessoas Deficientes, denominações utilizadas à época7. Inserido neste debate internacional, o Brasil promulgou a Constituição de 1.988 que, apesar de falhar na abordagem disposta em seu artigo 15, inciso II, como alhures demonstrado, em di- versos artigos, espalhados pelo texto, tratou dos direitos das pessoas com deficiência, como o direito ao trabalho, reserva de vagas em cargos e em- pregos públicos, critérios diferenciados para aposentadoria, preferência no pagamento de débitos de natureza alimentar, previdência e assistência social, educação, acessibilidade e deveres da família, da sociedade e do Estado em relação às crianças e jovens com deficiência.

Posteriormente, por meio do Decreto 3.956, de 8 de outubro de 2.001, o Brasil promulgou a Convenção Interamericana para a Elimina- ção de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala). Pelo Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2.009, foi promulgada a Convenção Internacional sobre os Di- reitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2.007 (Convenção de Nova York). Im- portante destacar que a Convenção de Nova York ingressou no Brasil sob o rito do §3o do artigo 5o da Constituição Federal, tendo, portanto, status constitucional, servindo, assim, de parâmetro de convencionalidade e de constitucionalidade para todo o ordenamento jurídico. Note-se que o tra- tamento dado ao tema pela Constituição de 1.988 encontra harmonia com as disposições da Convenção de Nova York, facilitando o seu ingresso na ordem constitucional. Posteriormente, no ano de 2.015, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que indica ter como base a Convenção de Nova York.

Este plexo normativo, também integrado pelo Tratado de Marra- queche8 e diversas leis federais, aqui não debatidos em razão do estreito escopo do trabalho, indica uma abordagem integral do tema nas últimas décadas, sob a perspectiva dos direitos humanos, conforme adiante será evidenciado.

Embora a Constituição Federal de 1.988 tenha avançado sobrema- neira no tratamento do tema da pessoa com deficiência, é o ingresso na ordem constitucional da Convenção de Nova York que traz mudança pro- funda, ao reconhecer que a compreensão das questões da pessoa com de- ficiência envolve necessariamente a análise de seu contexto social. Assim define a Convenção de Nova York as pessoas com deficiência: “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelec- tual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”9. Está claro que, embora compreenda a deficiência como um conceito em evolução, a Convenção reconhece que qualquer análise da pessoa com deficiência só pode se dar a partir da com- preensão da interação entre as suas características e as barreiras impostas pela sociedade que impedem o pleno exercício de seus direitos10.

Trata-se de uma profunda transformação da percepção da pessoa com deficiência, que passa a ser compreendida no contexto dos direitos humanos, sob o enfoque da diversidade humana, da inclusão social, do reconhecimento e respeito por sua dignidade inerente. O modelo social traz a mesma compreensão que baseia os direitos humanos de respeito pela dignidade, igualdade e solidariedade. Visa a eliminação da opressão às pessoas com deficiência, ignoradas pela construção de modelos sociais que as excluem.

Para o presente trabalho, importa avançar na compreensão acerca das barreiras impostas às pessoas com deficiência, cujo preâmbulo da Convenção esclarece que decorrem de atitudes e do ambiente que impe- dem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igual- dade de oportunidades com as demais11.

Embora a Convenção não tenha delimitado o conceito, o Estatuto da Pessoa com Deficiência esclareceu o que pode ser considerado barreira, trazendo rol que, apesar de não exaustivo (e é importante que não seja, pois, tal como o conceito de deficiência, trata-se de conceito dinâmico e em construção), baliza as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência que merecem o olhar da sociedade, especialmente do poder público na definição de suas políticas que devem visar a eliminação des- sas barreiras. Conforme o artigo 3o, inciso IV, do Estatuto são barreiras, dentre outros: “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de mo- vimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à com- preensão, à circulação com segurança”. Ainda, mencionado artigo classi- fica os tipos de barreiras em urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações e na informação, atitudinais e tecnológicas.

Em adição, ao tratar dos direitos em espécie, como educação, traba- lho, cultura, esporte, turismo, lazer, transporte e mobilidade, o Estatuto remete sempre à ideia de superação das barreiras como condição para a realização destes direitos, viabilizando a efetiva participação da pessoa com deficiência na sociedade.

A percepção equivocada da pessoa com deficiência está arraigada em nossa sociedade, em razão do longo passado de exclusão e rejeição, como aqui se demonstrou brevemente12. O rompimento das barreiras his- tóricas, socioculturais e comportamentais é um dos maiores desafios im- postos pela Convenção e pelo Estatuto, como instrumentos que são para a proteção dos direitos humanos dessa parcela da sociedade. Inadequada será a sociedade que não lograr êxito na inclusão de todas as pessoas, sem exceção, superando todos os tipos de barreiras que pela própria socie- dade foram criadas ao longo do tempo, como resultado da equivocada compreensão da pessoa com deficiência e consequente sonegação de seus direitos fundamentais. A Convenção de Nova York desloca a compreen- são da pessoa com deficiência da suposta dualidade entre normalidade e anormalidade e propõe essa análise mais rigorosa do despreparo da socie- dade que, desenhada de modo a excluir as pessoas com deficiência, acaba por impor-lhes diversos obstáculos na fruição de seus direitos.

3. A CAPACIDADE LEGAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
São princípios que orientam a Convenção de Nova York e que de- vem pautar a atuação dos Estados Partes o respeito pela dignidade ine- rente, autonomia individual e independência das pessoas com deficiência, reconhecendo-se a possibilidade de as pessoas com deficiência fazerem as suas próprias escolhas; não-discriminação, entendida como toda dife- renciação, exclusão ou restrição baseadas na deficiência; plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; respeito pela diferença e pela aceita- ção das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; igualdade de oportunidades; acessibilidade; igualdade entre homens e mulheres com deficiência; respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito de as crianças com deficiência preservarem a sua identidade.

De tais princípios é possível extrair o evidente rompimento com o passado de invisibilidade das pessoas com deficiência aqui narrado e a proposta de promoção da sua dignidade, por meio de sua inclusão, a ser constantemente promovida pelos Estados Partes, com um redesenho da sociedade que viabilize a participação de todos, bem como com o apro- veitamento das habilidades das pessoas com deficiência, desenvolvimento de suas potencialidades, reconhecendo-se, ademais, a sua autonomia e ca- pacidade legal, em igualdade de condições com as demais pessoas.

No tocante ao reconhecimento da capacidade das pessoas com de- ficiência, a Convenção inova sobremaneira, ao estabelecer textualmen- te, tendo como ponto de partida os direitos humanos, que é plena a sua capacidade legal, em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. O artigo 12 da Convenção detalha o reconhe- cimento desta capacidade, impondo deveres aos Estados Partes no senti- do de viabilizá-la: devem as pessoas com deficiência ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei13 e devem ser adotadas medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal, incluindo salvaguardas proporcionais, apropriadas e efetivas para prevenir abusos, respeitando- -se os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, garantindo-se o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, não sendo arbitrariamente destituídas de seus bens.

Apesar do ingresso da Convenção de Nova York no Brasil, no ano de 2.009, os avanços da comunidade jurídica foram tímidos no sentido do re- conhecimento da plena capacidade da pessoa com deficiência, certamente em razão das disposições do Código Civil de 2.00214, que, no artigo 3o, reconhecia a incapacidade absoluta dos que, por enfermidade ou deficiên- cia mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil e dos que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade e, no artigo 4o reconhecia a relativa incapacidade daqueles que, por deficiência mental, tivessem o discernimento reduzido, bem como dos excepcionais, sem desenvolvimento mental completo. É certo que tais disposições do Código Civil, a partir da ratificação da Con- venção pelo Brasil, não resistiriam a uma análise de convencionalidade e, com o ingresso da Convenção no ordenamento jurídico brasileiro, em 2.009, observados os ditames do §3o do artigo 5o da Constituição Federal, encontrariam óbice no controle de constitucionalidade. Porém, em razão Argumenta Journal Law n. 35 – jul / dez 2021 291 da permanência de uma visão paternalista, distorcida e discriminatória da pessoa com deficiência, pouca atenção15 se deu no Brasil a essa profunda alteração promovida pela Convenção na capacidade legal das pessoas com deficiência, até que sobreveio o Estatuto da Pessoa com Deficiência que, expressamente, revogou tais artigos do Código Civil.

Ainda assim, habituados ao modelo de substituição da vontade das pessoas com deficiência e de desconsideração de sua autonomia, parte da comunidade jurídica passou a defender que o novo regime da capa- cidade legal das pessoas com deficiência representaria desproteção a tais pessoas16, demonstrando incompreensão das alterações normativas e des- conhecimento do contexto de luta que redundou na construção da Con- venção e do Estatuto.

Fato é que, com as expressas previsões do Estatuto da Pessoa com Deficiência, especialmente de seu artigo 6o, e as alterações promovidas ao Código Civil pelo artigo 114, que implicaram na revogação das dispo- sições dos artigos 3o e 4o que tratavam especificamente das pessoas com deficiência, novo regime da capacidade foi positivado no Brasil, não sen- do demais a insistência de frisar que tal regime já poderia ser extraído das disposições da Convenção que tornaram incompatíveis os artigos do Código Civil de 2.002, vigentes à época de sua ratificação pelo Brasil, que desconsideravam a plena capacidade das pessoas com deficiência, mas que o apego ao positivismo infraconstitucional fez com que continuassem sendo invocados por parte da comunidade jurídica.

Esclareça-se que o regime das capacidades vigente no Brasil ante- riormente à Convenção e às alterações promovidas pelo Estatuto da Pes- soa com Deficiência ao Código Civil representava uma barreira jurídica à promoção da dignidade das pessoas com deficiência, em que sua liberdade de fazer escolhas era sistematicamente desrespeitada. Com as mudanças, houve uma definitiva dissociação entre deficiência e incapacidade. O arti- go 6o do Estatuto dispôs expressamente que a deficiência não afeta a plena capacidade da pessoa; mas, foi além: tratou de lançar luz sobre temas ca- ros, porém nebulosos, para as pessoas com deficiência, relativos ao direito ao próprio corpo e à liberdade de ter o seu próprio projeto de vida. Assim, em rol não exaustivo, destacou tal artigo a capacidade da pessoa com de- ficiência de casar-se e constituir união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; decidir sobre o número de filhos e ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; conservar sua fer- tilidade, vedada a esterilização compulsória; exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção. É evidente que bastaria o caput do artigo, que reco- nhece a plena capacidade da pessoa com deficiência, para abarcar todas as situações descritas em seus seis incisos. O reforço no detalhamento de tais direitos decorre, evidentemente, da necessidade de se criar uma cultura de reconhecimento e respeito a esses direitos, que, ao longo dos tempos, foram insistentemente sonegados das pessoas com deficiência.

Ao reconhecer a plena capacidade da pessoa com deficiência, obje- tiva-se a sua inclusão na sociedade, em conformidade com o direito in- ternacional dos direitos humanos, em contraposição à ideia paternalista de substituição de sua vontade que acabava por excluí-la não apenas da sociedade, mas da sua própria vida17.

4. AS MEDIDAS DE APOIO AO EXERCÍCIO DA CAPACIDADE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Se o regime de capacidades sofreu profunda alteração, como aqui se demonstrou, o mesmo ocorreu com as medidas de suporte ao exercício da capacidade pelas pessoas com deficiência, deixando de ser a interdição o instrumento para viabilizar tal exercício, adotando-se como regra as me- didas de apoio, aos que delas necessitarem, como forma de se preservar a autonomia da pessoa com deficiência. O modelo de decisão substituta é superado, dando espaço ao modelo de decisão apoiada (na forma de curatela ou tomada de decisão apoiada), permitindo-se às pessoas com deficiência o desenvolvimento do seu projeto de vida, na medida de suas possibilidades. Abandona-se a ideia paternalista de hiper proteção das pessoas com deficiência, que carregava consigo a desconsideração da sua dignidade e igualdade e redundava na substituição e desconsideração da sua vontade, para permitir que as pessoas com deficiência tomem o rumo de suas vidas, inclusive com o direito de fazer escolhas erradas, como to- das as demais pessoas.

Cabe aqui uma breve digressão para retomar a questão das barreiras impostas pela sociedade ao exercício dos direitos das pessoas com defi- ciência. Como se viu, há diversos tipos de barreiras impostas pela socie- dade que, em interação com as características das pessoas com deficiência, importam em exclusão. Neste sentido, o modelo de interdição que vigia anteriormente no ordenamento jurídico brasileiro18, uma espécie de “morte civil”, com a completa substituição da vontade do interditado e amplo poder ao curador para agir em seu nome, ainda que em seu bene- fício e interesse, podendo invadir, inclusive, questões de cunho existen- cial, afetas à saúde, religião, reprodução, sexualidade e relações afetivas, importava em barreira jurídica às pessoas com deficiência, violando seus direitos humanos19.

Não raramente, no âmbito dos processos de interdição, desenvol- viam-se relações desiguais de poder entre interditados e curadores, ge- ralmente familiares, estabelecendo-se, por vezes, certo temor e reverência pelas decisões dos curadores, ainda que houvesse discordância com o seu conteúdo. Essa prevalência da vontade dos curadores, em ambientes de intrincadas relações cotidianas de poder, representava nítida barreira aos direitos humanos das pessoas com deficiência, pois aniquilava sua auto- nomia e, por consequência, sua dignidade.

No novo modelo de apoio ao exercício da capacidade da pessoa com deficiência, desenhado especialmente pelo Estatuto, em consonância com as disposições da Convenção, a pessoa com deficiência, se assim necessi- tar, recebe suporte para decidir e para executar as suas decisões. A deci- são, antes apenas tutelada por um terceiro, passa agora a ser vista como um processo, desde a compreensão da questão, a tomada da decisão em si, a reflexão sobre o processo e seus resultados. O reconhecimento da capa- cidade da pessoa com deficiência como premissa, faz emergir um formato de curatela que privilegia a mínima interferência, como medida protetiva extraordinária, proporcional e adequada a cada caso, com decisão mo- tivada e modulada ao caso concreto, que demonstre a preservação dos interesses do curatelado20.

Neste sentido, o artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência traz alterações significativas à curatela, dispondo que sua eventual fixação se limita às questões patrimoniais, não podendo atingir questões existen- ciais, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. Ademais, estabe- lece o Estatuto que a curatela terá sempre caráter temporário e durará o menor tempo possível.
Faz-se necessário aqui um breve esclarecimento sobre as disposições do Estatuto da Pessoa com Deficiência e do Código de Processo Ci- vil sobre a curatela da pessoa com deficiência. O Estatuto da Pessoa com Deficiência foi sancionado em 06 de julho de 2.015, com vacatio legis de cento e oitenta dias, além de outros prazos mais dilatados para obrigações específicas. Entrou em vigor, portanto, em 02 de janeiro de 2.016. Já o Código de Processo Civil21, Lei 13.105, foi sancionado em 16 de março de 2.015, com vacatio legis de um ano da data de sua publicação oficial, fixado o termo final pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça como 18 de março de 2.016. Problema não haveria se a questão tivesse se limi- tado ao fato de que dois diplomas legais disciplinaram o tema da curatela. Diferente disso, porém, a sensibilidade está no fato de o terem feito de forma contraditória, em alguns de seus pontos. Dito em outras palavras, no tocante à curatela da pessoa com deficiência, o Estatuto da Pessoa com Deficiência abordou-a de uma forma, em absoluta consonância com as disposições da Convenção de Nova York, e, pouco mais de dois meses depois (considerada a vigência de ambos), o Código de Processo Civil abordou-a de outra, inaugurando amplo debate na comunidade jurídica e trazendo insegurança às pessoas com deficiência.

O Código de Processo Civil disciplina a curatela nos artigos 747 e seguintes. Denomina a medida, impropriamente, como interdição, reme- tendo à ideia de incapacidade, ao invés de suporte ao exercício pleno da capacidade. Há uma hiper valorização do laudo médico como prova da deficiência (artigo 750), em franca contraposição à proposta de avaliação holística da pessoa com deficiência e de sua interação com as barreiras sociais trazida pela Convenção. No mesmo sentido, a facultatividade do acompanhamento da entrevista (artigo 751, §2o) e da perícia com a pessoa com deficiência por equipe composta por expertos com formação multi- disciplinar (artigos 753, §1o e 756, §2o) conflita com a previsão de avalia- ção biopsicossocial da pessoa com deficiência, quando necessária, pre- vista pelo Estatuto (artigo 2o, §1o)22. Por fim, os artigos 755, §2o, e 757 do Código de Processo Civil estabelecem que, havendo, ao tempo da inter- dição (que assim não deveria ser denominada, como aqui já se destacou), pessoa incapaz sob a guarda e a responsabilidade do interdito (outra im- propriedade), o juiz atribuirá a curatela a quem melhor puder atender aos interesses do interdito e do incapaz, disposição que conflita diretamente com o artigo 6o do Estatuto que, em seu inciso VI estabelece como premissa que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Delimitadas, brevemente, as incongruências entre o Código de Pro- cesso Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, é forçoso concluir, também de forma sintética, que qualquer leitura que se proponha deste imbróglio deve ter como objetivo harmonizar a legislação infraconstitu- cional com as disposições da Convenção de Nova York, que, no ordena- mento jurídico brasileiro, tem status constitucional. A tradicional regra de que a lei posterior (Código de Processo Civil, considerada a sua entrada em vigor) revoga a anterior23 (Estatuto da Pessoa com Deficiência, utili- zado o mesmo critério) aqui não se aplica, pois o Estatuto da Pessoa com Deficiência se adequa às disposições da Convenção, o mesmo não ocor- rendo com alguns artigos do Código de Processo Civil, conforme aqui demonstrado. Em conclusão, prevalecem as normas do Estatuto e aque- las do Código de Processo Civil que com elas não conflitarem, tampouco conflitarem com o quanto estabelecido na Convenção de Nova York24.

Feita esta necessária digressão, da leitura convencional e constitucio- nal das disposições do Estatuto e do Código de Processo Civil, extrai-se um modelo de curatela mais humanizado e condizente com a proposta de promoção da dignidade das pessoas com deficiência, em consonância com os ditames da Convenção, especialmente no sentido do item “n” do seu Preâmbulo, que reconhece a importância, para as pessoas com defi- ciência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da li- berdade para fazer as próprias escolhas, viabilizando, assim, a sua plena e efetiva participação e inclusão na sociedade.

Neste sentido, destaca-se, no novo modelo e conforme artigo 1.768, IV, do Código Civil25, a possibilidade de iniciativa do procedimento e es- colha do curador pelo próprio curatelado, que, ciente de suas limitações e possibilidades, vislumbra a curatela como salvaguarda necessária ao exer- cício de sua capacidade, prestigiando-se, assim, a sua autonomia e as suas preferências. Observados os diferentes tipos e níveis de deficiências men- tal, intelectual e sensorial, a autocuratela mostra-se possível e desejável26.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência inaugurou também a possibi- lidade expressa de curatela compartilhada, em seu artigo 114, que promo- ve a inclusão ao Código Civil do artigo 1775-A, permitindo a divisão de obrigações e responsabilidades entre os curadores. Embora a jurisprudên- cia já reconhecesse tal possibilidade, sua positivação representou um ga- nho para as pessoas com deficiência, ao facultar um apoio mais adequado e direcionado aos diversos tipos de questões do curatelado.

Consta do artigo 12 da Convenção que as medidas relativas ao exer- cício da capacidade devem ser submetidas à revisão regular por uma au- toridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. A questão não foi disciplinada expressamente pela legislação infraconstitu- cional brasileira, salvo breve menção pelo Estatuto à temporariedade das medidas. Ao contrário, o artigo 756 do Código de Processo Civil manteve a disciplina anterior de levantamento da curatela, total ou parcial, me- diante a formulação de um pedido incidental pelos legitimados. Propõe a Convenção, porém, que a revisão se dê por regular iniciativa do próprio Estado, evitando, assim, que as pessoas com deficiência se tornem reféns de quaisquer arbitrariedades de seus curadores. Embora os diplomas le- gais não tenham fixado procedimentos específicos, é possível extrair da própria Convenção que, repita-se, tem status constitucional e plena apli- cabilidade, este dever dos juízes, promotores, advogados, sociedade, fami- liares e da própria pessoa com deficiência. Sendo assim, uma alternativa à lacuna legal é fixar a periodicidade de sua revisão na própria sentença que definir os termos da curatela; outra opção é fazer uso do prazo anual de prestação de contas, conforme previsão do artigo 84, §4o, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, para também realizar a revisão da curatela.

Pontuadas as principais características da nova curatela da pessoa com deficiência, é possível denotar um rompimento com o modelo an- terior da interdição, em que a autonomia e as preferências das pessoas com deficiência eram desconsideradas, com as suas decisões totalmente tuteladas por terceiros. Em síntese, a nova curatela, que deve ser adequada ao caso concreto, privilegia a dignidade da pessoa com deficiência, que deve ter voz e vez, na medida de suas possibilidades. A temporariedade da decisão e sua sujeição à revisão periódica indicam que, ao contrário do que ocorria no modelo da interdição, a sentença que define os termos da curatela não se trata de um decreto de morte civil, mas de um meio de salvaguarda temporária para viabilizar o exercício da capacidade pela pessoa com deficiência.

Esclareça-se que, se a situação exigir, como, por exemplo, em um caso de deficiência intelectual gravíssima, que comprometa severamente a capacidade de escolha da pessoa com deficiência, haverá a possibilidade de uma curatela mais ampla, incidindo, inclusive, sobre questões existen- ciais. Chega-se a tal conclusão a partir da leitura do artigo 1772 do Código Civil (com a alteração promovida pelo Estatuto, que aqui se entende não ter sido revogada pelo Código de Processo Civil), que estabelece que o juiz fixará a curatela conforme as potencialidades da pessoa. A curatela ampla, porém, apesar de admitida, não é a regra e essa é a mens legis da Convenção.

Além deste novo modelo de curatela, adequado aos direitos huma- nos das pessoas com deficiência, como acima se demonstrou, o Estatuto da Pessoa com Deficiência inseriu no ordenamento jurídico brasileiro a “tomada de decisão apoiada”, consistente em um processo judicial volun- tário, por meio do qual a própria pessoa com deficiência elege ao menos duas pessoas de sua confiança para que prestem auxílio em suas decisões sobre atos da vida civil, fornecendo-lhe os elementos e informações neces- sários para que possa exercer sua capacidade. O instituto está disciplinado no artigo 1.783-A do Código Civil, inserido pelas alterações promovidas pelo artigo 114 do Estatuto.

A pessoa com deficiência e seus apoiadores constroem um termo onde deve constar os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e a deferência à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa apoiada, seguindo os di- tames da Convenção de respeito à autonomia da pessoa com deficiência. A qualquer tempo, a pessoa com deficiência pode solicitar o término do acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada.

Destaque-se que, no procedimento de tomada de decisão apoiada, o suporte ao juiz por uma equipe multidisciplinar não é facultativo, como no procedimento da curatela previsto no Código de Processo Civil, a in- dicar, mais uma vez, que as disposições da curatela neste sentido merecem uma leitura convencional e constitucional, para compreender como obri- gatória a presença da equipe multidisciplinar, viabilizando uma análise holística da pessoa com deficiência.

O instituto é novo e ainda pouco utilizado pela comunidade jurídi- ca, talvez pela persistência da equivocada percepção da pessoa com defi- ciência e da desconsideração de seus direitos humanos. Trata-se, porém, de medida que, desde o início do procedimento, com a possibilidade de escolha dos apoiadores, valoriza a opinião e a vontade da pessoa com de- ficiência, viabilizando apoio dosado às necessidades, sem a imposição da vontade dos apoiadores e sem invasão às questões existenciais da pessoa com deficiência, em absoluta harmonia com as propostas da Convenção de Nova York de promoção da inclusão e reconhecimento da dignidade inerente da pessoa com deficiência27.

5. CONCLUSÃO: OS DESAFIOS IMPOSTOS AOS APOIADORES
Tendo sido analisadas as características da capacidade legal da pes- soa com deficiência e delineados os novos formatos das medidas de apoio ao exercício dessa capacidade, que em muito diferem do modelo anterior de substituição da vontade e desconsideração das preferências das pessoas com deficiência, passa-se à análise das dificuldades que se apresentam aos apoiadores, aqui entendidos como aqueles que exercem o apoio nos pro- cedimentos de curatela e de tomada de decisão apoiada. É evidente que os desafios não são apenas dos apoiadores, mas do Estado, da comunidade, da família e das próprias pessoas com deficiência. O recorte do presente artigo, porém, é no sentido de pontuar o relevante papel desempenhado por esses apoiadores na construção cotidiana das propostas trazidas pela Convenção de Nova York, papel que carrega consigo desafios estruturais que merecem um olhar específico, sob o enfoque dos direitos humanos.

Como aqui se demonstrou, a capacidade da pessoa com deficiência é plena e aqueles que precisarem de auxílio para o exercício desta capaci- dade devem ter à disposição meios adequados às suas necessidades, sendo garantida a todas as pessoas com deficiência a plenitude dos seus direitos humanos, sem discriminação, conforme destacado no item “c” do Preâm- bulo da Convenção, que reafirma a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liber- dades fundamentais.

Desafio que se apresenta aos apoiadores é a disponibilização de meios para se alcançar a vontade da pessoa com deficiência, criando con- dições para a sua ampla manifestação, considerados os diferentes tipos de impedimentos existentes e a sua interação com as diferentes barreiras impostas pela sociedade. Assim, além do papel do Estado e da sociedade neste sentido, incumbe aos apoiadores iniciativas para viabilizar meios assistivos às pessoas com deficiência, promovendo-se a adaptação razoável, quando necessária, para que a pessoa com deficiência tenha condições de manifestar a sua vontade. Garantir a comunicação adequada, se necessá- rio por meio de intérpretes, é, por exemplo, um dos desafios dos apoiado- res no exercício de sua função.

A situação de pobreza a que estão submetidas muitas pessoas com deficiência28 impõe dificuldades específicas aos apoiadores na viabilização do exercício da capacidade dessas pessoas, como o parco acesso à justiça, dificultado pelos custos e por uma linguagem pouco inclusiva, e a falta de acessibilidade, nas próprias moradias, nos transportes e equipamentos públicos e nas escolas públicas. Tais situações infligem aos apoiadores es- forços adicionais.

Uma das obrigações legais dos apoiadores é a de promover, na medi- da do possível, a autonomia da pessoa com deficiência, para que, visando a sua total inclusão, torne-se cada vez mais independente. É o que dis- põe o artigo 758 do Código de Processo Civil. Os apoiadores devem au- xiliar a pessoa com deficiência na compreensão das possibilidades e a ter mais clareza sobre as escolhas, o que não significa, porém, fazer sempre a escolha certa. Neste sentido, a curatela e a tomada de decisão apoiada, se utilizadas adequadamente, apresentam-se como medidas inclusivas e emancipatórias, como facetas da acessibilidade, pois visam a autonomia das pessoas com deficiência, permitindo sua participação na sociedade com contribuições na medida de suas possibilidades, na forma do item “m” do Preâmbulo da Convenção29.

Como demonstrado, as barreiras impostas pela sociedade agravam as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência, embaraçando ou inviabilizando a sua participação em igualdade de condições com as demais pessoas. Assim, é papel dos apoiadores diminuir as barreiras en- frentadas pelas pessoas com deficiência, sendo que, no ambiente de apoio ao exercício da capacidade legal, por meio da curatela e da tomada de decisão apoiada, as barreiras podem estar caracterizadas pelo próprio comportamento dos apoiadores, que, no cotidiano, acabam por exercer indevidas relações de poder com a pessoa com deficiência. O passado de desconsideração das pessoas com deficiência, aqui brevemente delineado, indica a necessidade de rompimento com qualquer percepção discrimi- natória, que deve ser substituída por uma atuação colaborativa da sociedade, especialmente dos apoiadores, que devem agir visando reconhecer a capacidade e desenvolver as habilidades das pessoas com deficiência, respeitando sua vontade, com a cautela de jamais promover ou aprofun- dar barreiras.

O histórico de invisibilidade das pessoas com deficiência e o fato de as mudanças no sentido do reconhecimento de sua plena capacidade se- rem tão recentes e profundas indicam uma possível necessidade de capa- citação específica dos apoiadores para o bom desempenho do seu mister, capacitação esta a ser ofertada pelo Estado. As mudanças são estruturais e rompem com o modelo de substituição de vontade que prevaleceu no Brasil, e no mundo, durante muitos anos, que teve como resultado uma percepção generalizada de que a pessoa com deficiência, em razão de suas demandas específicas, poderia ser alijada do convívio social. O modelo anterior, mais fácil, mas que desconsiderava a dignidade da pessoa com deficiência, arraigou práticas e percepções nocivas, que precisam ser su- peradas para que ocorra a efetiva inclusão da pessoa com deficiência. Os apoiadores têm papel fundamental nesta construção, mas necessitam de informações e suporte adequado, que devem ser viabilizados pelo poder público.

Os apoiadores e a família representam a base de relacionamento das pessoas com deficiência e por isso a importância de estarem alinhados com as propostas da Convenção e do Estatuto. Devem cuidar para que se desenvolvam relações horizontais que representem respeito à diferença e compreensão da deficiência como parte da diversidade humana. Tra- tam-se, porém, de tarefas de grande complexidade, que emergem de um modelo completamente diferente do anterior, que reconhece a plena ca- pacidade da pessoa com deficiência e milita em favor de sua autonomia e inclusão, com imensas dificuldades práticas e cotidianas impostas por uma sociedade desenhada para excluir a pessoa com deficiência.

Bem se vê que o novo modelo de apoio às pessoas com deficiência para o exercício de sua capacidade legal impõe dificuldades adicionais aos apoiadores, que, além da capacitação específica acima sugerida, merecem uma rede de suporte, que conte com profissionais habilitados que possam auxiliá-los na implementação dos direitos das pessoas com deficiência. É papel do poder público viabilizar essa rede de suporte, para que os apoia- dores compreendam a importância do seu papel como instrumentos de inclusão social e promoção da dignidade das pessoas com deficiência. Como afirmam Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti30, o rico complexo normativo hoje à disposição da pessoa com deficiência é apenas o início de um longo processo de promoção dos direitos humanos dessas pessoas, que deve permear uma construção árdua e cotidiana, em que os apoiadores desempenham papel fundamental.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA LEITE, Flávia Piva; GOMES RIBEIRO, Lauro Luiz; COSTA FILHO, Waldir Macieira da (Coordenadores). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016.

AZEVEDO, Rafael Vieira de. A capacidade civil da pessoa com deficiência no Direito brasileiro: reflexões acerca da Convenção de Nova Iorque e do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula e KIEFER, Sandra Filomena Wag- ner. Modelo social de abordagem dos direitos humanos das pessoas com deficiência. In Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Joyceane Bezerra de Menezes (Organizadora). Rio de Janeiro: Processo, 2016.

DIAS, Joelson; FERREIRA, Laíssa da Costa; GUGEL, Maria Apareci- da; COSTA FILHO, WALDIR Macieira da (Organizadores). Novos Co- mentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 3a edição revisada e atualizada. Brasília, Presidência da República, Secretaria de Direitos Humanos – SDH, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNPD, 2014.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Estatuto da Pessoa com Deficiência, Código de Processo Civil de 2015 e Código Civil: uma primeira reflexão. Editorial Fredie Didier Jr. n. 187. Disponível em: http://www.frediedidier.com.br/ editorial/editorial-187/. Acessado em 27 de junho de 2020.

MATOS, Ana Carla Harmatiuk e OLIVEIRA, Lígia Ziggiotti. Além do Es- tatuto da Pessoa com Deficiência: reflexões a partir de uma compreensão dos Direitos Humanos. In Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Joyceane Bezerra de Menezes (Organizadora). Rio de Janeiro: Processo, 2016.

MENEZES, Joyceane Bezerra de. O novo instituto da Tomada de Decisão Apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pes- soa com deficiência instituído pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015. In Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Joyceane Bezerra de Menezes (Organizadora). Rio de Janeiro: Processo, 2016.

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 11a edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

Notas de Fim
1. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2.009. 2. Lei 13.146, de 06 de julho de 2015.
3. “Como absolutamente incapaz, tais indivíduos estavam sujeitos, então, em uma in- terpretação conforme a Constituição, à interdição e à representação em razão da sua incapacidade para exercer os atos negociais da vida civil. Como decorrência dessa visão médico-jurídica, foram segregados e internalizados em instituições especializadas, na medida em que não poderiam se integrar e cooperar, como cidadãos, na sociedade ci- vil”. BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula e KIEFER, Sandra Filomena Wagner. Modelo social de abordagem dos direitos humanos das pessoas com deficiência. In MENEZES, Joyceane Bezerra de (Organizadora). Direito das pessoas com deficiência psíquica e in- telectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, página 84.
4. “A história constitucional brasileira revela que dispositivos específicos acerca dos di- reitos das pessoas com deficiências somente puderam ser observados a partir de 1978, com a edição da Emenda Constitucional 12, que representou um marco na defesa des- se grupo. Seu conteúdo pode ser considerado abrangente, uma vez que compreendia os principais direitos das pessoas com deficiência (educação, assistência e reabilitação, proibição de discriminação e acessibilidade). No entanto, a eficácia desta norma ficou comprometida pelo regime ditatorial, que limitou significativamente os direitos e garan- tias individuais”. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 11a edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, página 548.
5. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
6. Necessário esclarecer que a ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova York (dora- vante tratada) passou a exigir uma leitura convencional do artigo 15, inciso II, da CF/88, mas tal questão não será aqui abordada para não impedir a fluidez do texto.
7. In https://nacoesunidas.org/onu-celebra-em-sp-tres-decadas-da-proclamacao-do-a- no-internacional-das-pessoas-com-deficienci/ e http://portal.mec.gov.br/index.php?op- tion=com_docman&view=download&alias=424-cartilha-c&category_slug=documen- tos-pdf&Itemid=30192, acessados em 28 de junho de 2020.
8. Decreto no 9.522, de 8 de outubro de 2.018.
9. Artigo 1o da Convenção de Nova York.
10. “Em seu contexto, uma das questões mais importantes trazidas a lume foi a conso- lidação de um novo paradigma sobre pessoas com deficiência: construído com partici- pa&

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Capacidade civil da pessoa com deficiência https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/capacidade-civil-da-pessoa-com-deficiencia/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/capacidade-civil-da-pessoa-com-deficiencia/#respond Mon, 26 Oct 2020 20:55:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=35 A jurisprudência, especialmente a partir de 2015, tem passado por profundas alterações no tocante ao reconhecimento da capacidade civil da pessoa com deficiência e à fixação das medidas de apoio ao exercício desta capacidade. Tal guinada jurisprudencial decorre do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), editado em consonância com a Convenção de Nova York (Decreto nº 6.949/2009), que ingressou no ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional, cumprindo os requisitos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal.

A Convenção e o Estatuto conceituam a pessoa com deficiência a partir de uma compreensão holística, que considera as características do indivíduo em interação com um ambiente hostil a diversidades, o que acaba por impor barreiras ao exercício de sua participação na sociedade em igualdade de oportunidades com os demais.
Com as alterações promovidas pelo Estatuto nos arts. 3º e 4º do Código Civil, reconhece-se a plena capacidade civil da pessoa com deficiência, dissociando-se deficiência de incapacidade (12.STJ).

Abandona-se o antigo modelo de interdição total que, sob o argumento de proteger a pessoa com deficiência, acabava por segregá-la. Paulatinamente, a jurisprudência vem reconhecendo a prevalência de medidas de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa com deficiência, quando necessárias, em detrimento da substituição da sua vontade (4.TJSP, 5.TJSP). Ganha espaço a “tomada de decisão apoiada”, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Estatuto, consistente em um procedimento pelo qual a pessoa com deficiência elege ao menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade (17.TJPR, 20.TJAC, 13.TJSE). Ressalte-se que a tomada de decisão apoiada não se confunde com o mandato, que, porém, também tem sido reconhecido pela jurisprudência como forma de apoio ao exercício da capacidade da pessoa com deficiência (11.TJRS).

Nesse contexto, a curatela ganha novos contornos e passa a ser compreendida como medida excepcional. Visando à inclusão, busca-se o máximo aproveitamento das potencialidades e habilidades das pessoas com deficiência (1.TJSP, 2.TJSP, 3.TJSP, 8.TJDFT, 9.TJRS, 14.TJSE, 18.TJPE, 20.TJAC), devendo a eventual curatela ser fixada em observância às condições específicas da pessoa curatelada (7.TJDFT, 9.TJRS), que deve ser avaliada em seu contexto biopsicossocial (7.TJDFT, 15.TJMS), por meio de perícia multidisciplinar que considere as suas peculiaridades em relação ao seu contexto social e de vida. A jurisprudência passa a reconhecer a insuficiência do laudo médico para essa necessária avaliação holística (1.TJSP, 3.TJSP). Privilegia-se o contato do Poder Judiciário com a pessoa com deficiência (2.TJSP, 4.TJSP, 8.TJDFT), exatamente para se chegar à máxima compreensão de suas condições e características, a fim de que a definição da curatela seja proporcional, adequada e modulada ao caso concreto, limitada temporalmente (19. TJMT),1 admitindo-se a curatela compartilhada (6.TJSP).

A jurisprudência tem reconhecido a limitação da curatela apenas aos atos de natureza negocial ou patrimonial (9.TJRS, 10.TJRS, 16.TJAM), não alcançando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.2 Por fim, os tribunais têm reconhecido que a curatela não pode ser exigência para a obtenção de benefícios assistenciais3 (5.TJSP, 17.TJPR).

Do exposto, verifica-se uma jurisprudência em construção, no sentido do pleno reconhecimento da capacidade da pessoa com deficiência e da promoção da sua inclusão, com valorização de seus atributos e potencialidades e consideração da sua vontade, na medida das possibilidades, com vistas a promover a sua autonomia e a sua dignidade. Grande tem sido o debate sobre a aplicação das novas premissas da capacidade civil às curatelas definidas no modelo anterior, especialmente porque seus efeitos se protraem no tempo e tais processos, por serem de jurisdição voluntária, não produzem coisa julgada material.

1 Conforme art. 84 do Estatuto.
2 Conforme art. 85 do Estatuto.
3 Conforme art. 110-A da Lei nº 8.213/1991, introduzido pelo Estatuto.

Referências

1. TJSP. Apelação Cível nº 1006647.42.2016.8.26.0322.
2. TJSP. Apelação Cível nº 1012369.45.2019.8.26.0001.
3. TJSP. Agravo Interno Cível nº 2120227.87.2020.8.26.0000/50000.
4. TJSP. Apelação Cível nº 1003559.90.2018.8.26.0268.
5. TJSP. Apelação Cível nº 0056408.81.2012.8.26.0554.
6. TJSP. Apelação Cível nº 1005036.02.2017.8.26.0619.
7. TJDFT. Agravo de Instrumento nº 0713419.79.2020.8.07.0000.
8. TJDFT. Apelação Cível nº 0740584.24.2018.8.07.0016.
9. TJRS. Apelação Cível nº 0136405.72.2019.8.21.7000.
10. TJRS. Apelação Cível nº 0310666.16.2019.8.21.7000.
11. TJRS. Apelação Cível nº 0299695.06.2018.8.21.7000.
12. STJ. Recurso Especial nº 1.694.984-MS.
13. TJSE. Apelação Cível nº 202000715659.
14. TJSE. Apelação Cível nº 201900731594.
15. TJMS. Apelação Cível nº 0801658.46.2015.8.12.0016.
16. TJAM. Apelação Cível nº 0002061.84.2016.8.04.0000.
17. TJPR. Apelação Cível nº 0000083.94.2005.8.16.0171.
18. TJPE. Apelação Cível nº 0010518.90.2015.8.17.2001.
19. TJMT. Apelação Cível nº 84157/2017.
20. TJAC. Apelação Cível nº 0700026.32.2014.8.01.0011.

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A inconstitucionalidade da revogação do Decreto 8.954/2017 e a proibição do retrocesso na implementação do Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/a-inconstitucionalidade-da-revogacao-do-decreto-8-954-2017-e-a-proibicao-do-retrocesso-na-implementacao-do-cadastro-nacional-de-inclusao-da-pessoa-com-deficiencia/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/a-inconstitucionalidade-da-revogacao-do-decreto-8-954-2017-e-a-proibicao-do-retrocesso-na-implementacao-do-cadastro-nacional-de-inclusao-da-pessoa-com-deficiencia/#respond Wed, 21 Oct 2020 20:56:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=37 A INCONSTITUCIONALIDADE DA REVOGAÇÃO DO DECRETO 8.954/2017 E A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO NA IMPLEMENTAÇÃO DO CADASTRO NACIONAL DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

The unconstitutionality of the repeal of Decree 8,954 / 2017 and the prohibition of retrogression in the implementation of the National Register for Inclusion of Persons with Disabilities

Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 121/2020 | p. 203 – 225 | Set – Out / 2020 DTR202012850

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A Ordem que queremos https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/ola-mundo/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/ola-mundo/#comments Wed, 05 Aug 2020 18:30:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=1 Por Arystóbulo de Oliveira Freitas, terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Há uma centralidade institucional que merece ser revista e diluída, para que as discussões e deliberações sobre temas relevantes não mais sejam tomadas em pequenas e restritas reuniões.

Foi publicado, no último dia 24, no site Migalhas, texto assinado por Antonio Ruiz Filho, diretor da Seccional Paulista da OAB e ex-presidente da AASP.

Com singular objetividade e percuciência, Antonio Ruiz Filho abordou temas que são caros à advocacia, não só Paulista, mas de todo o país.

As últimas eleições trouxeram à tona importantes reflexões sobre nossa profissão, o enfrentamento dos graves problemas com que se depara o profissional da advocacia e as perspectivas para o futuro. Infelizmente, não houve o aprofundamento e abrangência que se espera durante o período de embate eleitoral. Isso porque, como bem avaliou Ruiz Filho, há uma centralidade institucional que merece ser revista e diluída, para que as discussões e deliberações sobre temas relevantes não mais sejam tomadas em pequenas e restritas reuniões.

Assim, não tenho dúvida de que a dinâmica das discussões e votações do Conselho da OAB/SP, pela representatividade e qualidade de seus componentes, reclama radical alteração, para que os principais temas sejam submetidos a esse colegiado. Não parece crível ou razoável que haja uma intensa mobilização da advocacia de todo o Estado de São Paulo, uma vez por mês, para simplesmente votar alguns processos ético-disciplinares, instalação de subseções e outras matérias que, apesar da importância organizacional, afastam o colegiado, deliberadamente, dos temas nucleares da advocacia e cidadania.

A título de exemplo, pode-se citar a gravíssima crise educacional no Estado de São Paulo, agravada por uma reforma que sequer foi discutida com a sociedade. Atualmente, são quase duas centenas de escolas ocupadas, em todo o Estado, sem que esse tema tenha sido pautado para o Conselho da OAB/SP, que, aos poucos, vem perdendo o protagonismo que, durante anos, foi visto como uma marca de nossa Seccional.

Sobre esse esvaziamento do colegiado, a avaliação de Ruiz Filho é de especial oportunidade, pois devemos – os profissionais da advocacia – buscar uma solução para a crise que, a título de sugestão, pode caminhar pela criação de um novo colegiado, nos moldes do Órgão Especial do Conselho Federal da OAB. Sabemos que, para tanto, serão necessárias articulações no âmbito do Conselho Federal, que certamente compreenderá a importância de tal medida.

Há muito mais que dizer, mas o importante é que tenhamos consciência de que nossa Seccional reclama profundas mudanças, que a realinhem com a relevância e o protagonismo da advocacia bandeirante

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STF, patente de medicamento e a verdade não revelada https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/stf-patente-de-medicamento-e-a-verdade-nao-revelada/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/stf-patente-de-medicamento-e-a-verdade-nao-revelada/#respond Mon, 22 Jun 2020 20:55:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=33 Arystóbulo de Oliveira Freitas, segunda-feira, 22 de junho de 2020

Discute-se, na ADIn, a impossibilidade de conceder uma compensação ao depositante de uma patente, na hipótese de haver demora no exame desse temporário monopólio (se houver demora superior aos 20 anos de vigência, em decorrência de atraso imputável ao INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial -, o depositante “ganha” mais 10 anos de monopólio).

Encontra-se pendente de julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal, a ADIn 5529, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, na qual se afirma a inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único, da Lei de Propriedade Industrial; essa ADIn é, na verdade, a reprodução da ADIn anteriormente ajuizada por ABIFINA-Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades.

Discute-se, na ADIn, a impossibilidade de conceder uma compensação ao depositante de uma patente, na hipótese de haver demora no exame desse temporário monopólio (se houver demora superior aos 20 anos de vigência, em decorrência de atraso imputável ao INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial -, o depositante “ganha” mais 10 anos de monopólio). Essa demora, ou backlog, decorre de inúmeros fatores, tais como insuficiência de estrutura e reduzido número de examinadores.

Significa dizer que, apesar de o prazo de vigência de uma patente de medicamento ser de, no máximo e por força de lei, 20 anos, a aplicação do artigo 40, parágrafo único, da LPI pode conceder ao depositante 30 anos ou mais de monopólio sobre determinada molécula.

Vale, nesse sentido, esclarecer uma questão que é, usualmente, distorcida na maioria das manifestações daqueles que defendem a constitucionalidade da norma. As instituições que preconizam e pedem o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único da LPI, NÃO SÃO CONTRÁRIAS À INOVAÇÃO NEM MUITO MENOS À PATENTE. Respeita-se o monopólio temporário das patentes, aqui discutindo-se especificamente patentes de medicamentos. O que se combate é o abuso!

Esse abuso decorre, por exemplo, da prorrogação do uso exclusivo de determinado princípio ativo, por prazo superior a 20 anos, impedindo-se a fabricação e comercialização do correspondente medicamento genérico, o que, na prática, impõe à população, principalmente os mais vulneráveis, a indevida e injusta restrição ao acesso a tais medicamentos ou, até mesmo, a excessiva oneração do Poder Público, que se vê obrigado a adquirir o medicamento inovador pelo preço mais elevado, decorrente da prorrogação da vigência da patente. Esse abuso provocou a iniciativa da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos – PróGenéricos de intervir na ADIn em questão, para demonstrar os efeitos deletérios decorrentes da inconstitucionalidade da norma em referência, especialmente com relação ao acesso a medicamentos genéricos.

Ressalte-se que o medicamento genérico constitui cópia do medicamento de referência ou inovador, e somente pode ser comercializado após o vencimento da respectiva patente. Dessa forma, a invenção e inovação são motores de elevada importância para a produção e comercialização dos medicamentos genéricos. E, considerando a importância de tais medicamentos, não se pode admitir a extensão do prazo legal da patente, sob o risco de se atrasar a produção e comercialização dos genéricos.

Aliás, não basta a produção de uma cópia para que seja admitido o genérico. Necessária a prévia realização de exames de bioequivalência e biodisponibilidade, para se comprovar os mesmos efeitos e composição do medicamento inovador. E o início da comercialização depende da precificação do medicamento genérico em 35% a menos do que o referência, por determinação legal.

Esse engenhoso sistema legal promove, logo no início da comercialização do medicamento genérico, a ampliação do acesso da população ao medicamento.

Por outro lado, os defensores da constitucionalidade do artigo 40, parágrafo único da LPI argumentam que não se pode transferir para o titular da patente o ônus da demora na conclusão do procedimento de concessão de patente.

Todavia, há uma questão de suma relevância a ser contraposta a esse argumento. Na práxis do sistema patentário brasileiro, há um monopólio de fato; ou seja, desde a publicação do pedido de patente, o titular possui mecanismos e instrumentos processuais para inibir qualquer outra pessoa, natural ou jurídica, de explorar, fabricar e ou comercializar qualquer produto que possua o mesmo objeto cuja patente pretende obter.

Ou seja, o depositante do pedido de patente exerce, antes mesmo da concessão de tal patente, os direitos decorrentes do monopólio. A demora no exame e decisão de concessão de patente de medicamento NÃO impacta em qualquer direito do titular da pretendida patente.

O artigo 44 da lei 9279 outorga ao depositante de um pedido de patente o direito de obter indenização, com efeitos retroativos, decorrentes da exploração, por terceiros, do objeto da patente de medicamentos, aí acrescidos lucros cessantes, nos termos do artigo 210.

Além disso, decisões de nossos Tribunais vêm ampliando essa proteção, para permitir medidas constritivas em prol da mera expectativa de direito, decorrente de depósito de patente pendente de análise. Ou seja, antes mesmo da concessão da patente, o Poder Judiciário vem concedendo, por exemplo, medidas de busca e apreensão de produtos, que violariam, em tese, a pretendida patente.

Assim, a compensação, cuja constitucionalidade é disputada por algumas instituições privadas, constitui verdadeiro prêmio, bis in idem, para os depositantes de pedido de patente, na medida em que, além de lhes ser reconhecido o direito à indenização por danos materiais e lucros cessantes, ainda teriam direito a prazo superior ao limite legal para a vigência da patente.

Aqui não se discute proteção ao inventor, ao inovador, ou até mesmo de segurança jurídica, mas sim de atribuição de indevido e abusivo prêmio ao titular da patente, que não encontra paralelo em outros países que aplicam e respeitam o tratado internacional sobre patentes (Trade Related Aspects of Intellectual Property – TRIPS).

Os direitos da população, cujo acesso a medicamentos é restrito por força da inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único, da LPI, são inequivocamente direitos fundamentais, tais como estruturados em nossa Constituição Federal.

Esses direitos fundamentais, de estatura constitucional, aí incluídos os direitos à igualdade e à saúde, devem ser preservados e protegidos pelo Estado, notadamente na sua dimensão intersubjetiva.

Mesmo que se admitisse que há outras normas ou princípios que deveriam ser analisados na avaliação da inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único da LPI, ainda assim, aplicando-se a regra do “sopesamento”, tão cara a Robert Alexy (Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 95/97), teríamos a prevalência das normas que atendem à coletividade de pessoas, parte delas em situação de extrema vulnerabilidade, e à necessária garantia de acesso ao medicamento, contrapondo-se, nesse diapasão, à alegada necessidade de postergar o uso exclusivo de medicamento, em prazo superior a 20 anos, para ampliar, abusivamente, o retorno de investimento em determinado estudo.

Em resumo, o inequívoco e abusivo monopólio de fato, exercido por diversos depositantes de pedidos de patente de medicamentos, que permite o amplo uso exclusivo do objeto do pedido durante a totalidade do prazo legal autorizado – 20 anos – e mesmo antes da concessão da patente, evidencia a inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único das LPI, que concede um prêmio de mais 10 anos de uso exclusivo sobre determinado princípio ativo, retardando o lançamento de medicamentos genéricos e, consequentemente, restringindo o acesso da população a medicamentos

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Ceneviva: inspiração e reflexões sobre Direito Privado https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/ceneviva-inspiracao-e-reflexoes-sobre-direito-privado/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/ceneviva-inspiracao-e-reflexoes-sobre-direito-privado/#respond Mon, 04 May 2020 20:54:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=31 Arystóbulo de Oliveira Freitas, segunda-feira, 4 de maio de 2020

As reflexões aqui apresentadas sobre o Direito Privado nos convidam a uma profunda discussão sobre as possíveis e relevantes modificações que certamente virão a povoar os debates jurídicos no curso dos próximos meses.

Estávamos todos na sala onde são ministradas as aulas magnas da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no segundo pavimento do prédio antigo. 

Alunos de graduação, em sua grande maioria com menos de 20 anos. Uma vida inteira por perseguir: advogadas, juízes, promotoras, defensores públicos, e vários desgarrados para outras carreiras ou atividades, total ou parcialmente desconectadas do Direito. 

Primeiro ano da década de 1980, segundo ano do nosso curso de Direito. Lembranças recentes da ilegal e truculenta invasão do campus, incêndio criminoso no Tuca, primeira eleição direta para reitoria (doutora Nadir Kfouri), com voto de estudantes, professores e funcionários. 

Eis que nos deparamos com o professor Walter Ceneviva. Civilista já consagrado, apesar de desconhecido desses jovens jejunos; elegante no andar e vestir, fala suave, corretíssima, sem exageros ou tecnicismos arrogantes e desnecessários. Humor refinado e em dosagem medicamentosa. Memória prodigiosa. 

Em uma das aulas, sobre direitos da personalidade, iniciou sua preleção com algumas perguntas: alguém conhece Maria da Graça Costa Penna Burgos, Sebastião Rodrigues Maia, Senor Abravanel? 

Todos imaginavam que poderiam ser pessoas famosas, mas não eram conhecidas pelos nomes completos, submetidos a registros oficiais. 

A partir daí, com essa inteligente conexão com a realidade dos alunos, ele passou a explicar o direito ao pseudônimo, nome artístico, e daí ampliando as explicações para o direito da personalidade (para quem não se recorda: Gal Costa, Tim Maia e Silvio Santos).

A nova Constituição trouxe significativas mudanças na estrutura do Poder Judiciário.

Esse brevíssimo exemplo ficou para sempre na memória daqueles, como o autor desse breve texto, que tiveram a alegria, sorte e grande honra de terem vivido os tempos em que o corpo docente do curso de Direito, da PUC de São Paulo, contava com o professor Walter Ceneviva. 

Nossa turma de 1984 foi a última para a qual o professor Walter exerceu o seu magistério. Não é demais repetir o que se disse na tradição oral: Ceneviva é o exemplo vivo e pulsante da excelência no ensinar e transmitir aos jovens (e aos também não jovens) o caminho para a compreensão da complexidade que cerca os conceitos e teorias jurídicas. 

A partir dessas lembranças, sentimo-nos no dever de apresentar algumas reflexões sobre o Direito Privado, até mesmo para homenagear o nosso grande mestre Ceneviva. 

Os anos 1980 foram de grande importância para as transformações sociais e jurídicas que iriam ocorrer nas décadas seguintes, notadamente após a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988. 

A codificação de 1916 apresentava os alicerces do Direito Civil (patrimônio, família e contratos) permeados pelo individualismo e voluntarismo. Na década de 1980, para entendermos as substanciais mudanças que impactaram a produção legislativa e nosso sistema jurídico, vale recordarmos alguns eventos sociais e políticos que refletiam o ambiente e as tensões da época. 

A queda do muro de Berlim (simbolismo do fim da Guerra Fria), o movimento democrático das “Diretas Já” e o fim do regime militar bem representaram o início de uma nova visão sobre o mundo e a tendência do protagonismo de grupos sociais e instituições representativas de coletividades para o caminhar em direção de iniciativas voltadas para a proteção e defesa dos interesses difusos e coletivos, em contraposição ao excessivo individualismo que até então prevalecia. 

Mais ainda, pudemos constatar a maior presença do Estado nas relações interpessoais e na economia, de um modo geral. Código de Defesa do Consumidor, Lei de Proteção ao Meio Ambiente, Lei da Ação Civil Pública, Lei de Locações são exemplos de dirigismo típico dos anos 1980 e seguintes. 

A nova Constituição amalgamou todas essas tendências e trouxe significativas mudanças na estrutura do Poder Judiciário. Para o que importa a esse texto, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a exercer com mais vigor e amplitude as competências constitucionais, tão adormecidas nos anos do regime militar. 

Diante da estrutura principiológica de nossa Constituição, gradualmente o STF passou a redimensionar a antiga e já desgastada divisão entre Direito Privado e Direito Público. Vivenciamos, assim, os primeiros sinais do que passou a ser chamado de neoconstitucionalismo.

Ao invés da capital importância dada ao Direito Privado e seus institutos (propriedade, contratos, família e sucessões), na dimensão voluntarista e intersubjetiva, passou-se a considerar, na construção jurisprudencial, os valores e princípios da dignidade humana, boa-fé e probidade nas relações jurídicas. 

O jurista Gustavo Tepedino reconhece, ademais, três conquistas que impactaram a cultura jurídica brasileira na órbita das mudanças acima,1 identificando, com singular objetividade, as principais transformações aqui narradas. 

Nas décadas seguintes à promulgação da CF, houve uma grande produção legislativa sob as premissas acima mencionadas. Vale destacar aqui o novo Código Civil (CC) de janeiro de 2002, que trouxe significativos avanços na eticidade, probidade e boa-fé das relações privadas. Na Exposição de Motivos elaborada pelo supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do CC, professor Miguel Reale, ficou evidenciada a intenção de não só trazer maior concretude ao principal alicerce legislativo das relações privadas, como também de reduzir o protagonismo do individualismo nas relações jurídicas.2

Nesse contexto, a teoria neoconstitucional ou pós-positivista ganhou musculatura, passando a permear a prevalência das normas, princípios e valores constitucionais nas diversas relações jurídicas, em fenômeno que passou a se denominar de “constitucionalização” das diversas dimensões relacionais do Direito. 

Isso porque o positivismo jurídico não mais poderia responder aos anseios sociais e políticos contemporâneos. O jusfilósofo Norberto Bobbio bem demonstra essa característica do positivismo, reforçando a sua abordagem avalorativa do Direito.3 

Então, a partir do início da década de 1990, o STF passou, cada vez com mais frequência, a adotar os paradigmas do neoconstitucionalismo em suas decisões. 

Cita-se, a título de exemplo, a adoção dos direitos fundamentais em questões de Direito Privado, tanto na órbita vertical (privado-público) como na horizontal (privado-privado). No recurso extraordinário 201.819-8, de relatoria da ministra Ellen Gracie, a discussão a respeito do tema aflorou com ênfase na prevalência dos direitos fundamentais, mesmo em se tratando de relações de Direito Privado. Essa decisão veio a ratificar uma tendência do STF, que se havia manifestado, ainda embrionariamente, desde a metade dos anos 1990 (recursos extraordinários 158.215, 160.222 e 161.243).4 

Tais decisões demonstram, no tema específico, que a constitucionalização do Direito Privado foi, pouco a pouco, permeando as decisões do STF (não se pode esquecer que essa orientação foi acentuada, nas décadas seguintes, com temas da área de família e sucessões – união homoafetiva, sucessão em união estável etc.). 

Essa tendência provocou, e vem provocando, crítica sobre regras exegéticas adotadas pela Suprema Corte, na medida em que a dimensão pós-positivista dos julgados cria insegurança quanto às alterações na jurisprudência da Corte. 

A reflexão até agora apresentada traz para o Direito Privado paradigmas de aplicação e interpretação, levando em consideração as alterações constitucionais havidas, além daquelas de natureza legal, restringindo cada vez mais o viés individualista e voluntarista. Por outro lado, o dirigismo contratual levou nossos tribunais a intensificar a intervenção do Estado nas relações negociais (locação, relação de consumo, franquia, etc.). 

Há também de se ressaltar que a tendência da predominância do neoconstitucionalismo em nosso STF foi definidora da denominada “constitucionalização do Direito Privado”, aportando princípios e normas constitucionais na interpretação de questões de Direito Privado, notadamente no que se refere aos direitos fundamentais. 

Como visto, durante décadas, desde final dos anos 1980, vislumbramos mudanças legislativas e jurisprudenciais que, no curso de 30 anos, impactaram a aplicação e interpretação do Direito Privado em nosso país, provocando a alteração da cultura jurídica, dos negócios jurídicos, das práticas empresariais, assim como das guidelines das agências reguladoras.

A constitucionalização do Direito Privado foi, pouco a pouco, permeando as decisões do STF.

Essas alterações, todas com grande impacto na sociedade brasileira, foram promovidas em determinada conjuntura social, política e econômica, o que não significa nem impõe a respectiva perenização. 

Com efeito, a promulgação de leis recentes (por exemplo, Lei da Liberdade Econômica – lei 13.874/19, Lei de Franquia – lei 13.966/19) vem sinalizando algumas mudanças de paradigmas nas normas de Direito Privado. O reforço de regras que atribuem força e amplitude aos ajustes negociais, privilegiando as relações intersubjetivas, a redução das hipóteses de intervenção do Estado nas relações negociais, maior limitação na responsabilização do quotista ou acionista para as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, etc., tudo vem sinalizando uma revalorização do individualismo nas questões relacionadas com Direito Privado. 

Essas novas balizas legislativas, acompanhadas de importantes alterações no cenário político, social e econômico de nosso país, poderão, com certa margem de certeza, impactar alterações jurisprudenciais, especialmente perante a Suprema Corte, principalmente diante da proximidade de mudança na composição do STF. 

As reflexões aqui apresentadas sobre o Direito Privado nos convidam a uma profunda discussão sobre as possíveis e relevantes modificações que certamente virão a povoar os debates jurídicos no curso dos próximos meses.

Não poderíamos deixar de encerrar esse breve texto para enaltecer a iniciativa da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), sob a coordenadoria do doutor Antonio Ruiz Filho, seu ex-presidente, na decisão de homenagear o grande jurista e professor Walter Ceneviva. 

__________

1 “A partir daí três significativas conquistas se estabeleceram fortemente na cultura jurídica brasileira, na esteira do que ocorreu na Europa continental, que, desde o segundo pós-guerra, indica a progressiva funcionalização das relações jurídicas patrimoniais a valores extrapatrimoniais. A primeira conquista consiste na descoberta do significado relativo e histórico dos conceitos jurídicos, antes vistos como neutros e absolutos. Relativizaram-se os conceitos, a partir da compreensão de que o direito é um fenômeno histórico e social, forjado na tensão dialética entre norma e o fato. A segunda conquista da cultura jurídica contemporânea é a superação da rígida dicotomia entre direito público e o direito privado. […] A terceira conquista, finalmente, revela-se na absorção definitiva, pelo Texto Constitucional, no Brasil com alhures, dos valores que presidem a iniciativa econômica privada, a família, a propriedade e demais institutos do direito civil, demonstrando que tais matérias não se circunscrevem mais, exclusivamente, no recesso do espaço privado, inserindo-se, ao contrário, na ordem pública constitucional, antes preocupada exclusivamente com matérias do chamado direito público (circunscritas às relações entre o cidadão e o Estado)” (TEPEDINO, 2012, p. 15-21).

2 “Não é sem motivo que reitero esses dois princípios, essencialmente complementares, pois o grande risco de tão reclamada socialização do Direito consiste na perda dos valores particulares dos indivíduos: transpessoais ou comuns aos atos humanos, sendo indispensável, ao contrário, que o individual ou o concreto se balance e se dinamize com o serial ou o coletivo, numa unidade superior de sentido ético. […] O que se tem em vista é, em suma, uma estrutura normativa concreta, isto é, destituída de qualquer apego a meros valores formais e abstratos. Esse objetivo de concretude impõe soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, com frequente apelo a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, equidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência das prestações etc. […] A ‘exigência de concreção’ surge exatamente da contingência insuperável de permanente adequação dos modelos jurídicos aos fatos sociais’ in fieri” (NOVO CÓDIGO CIVIL, 2002, p. 35).

3 “O positivismo nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora a característica fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato. […] O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor: na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito em bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro responde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal” (BOBBIO, 2006, p. 135-136).

4 “[…] um fenômeno facilmente observável em sistemas jurídicos de jurisdição constitucional – a chamada ‘constitucionalização do direito privado’, mais especificamente do direito civil. Noutras palavras, as relações privadas, aquelas que até bem pouco tempo se regiam exclusivamente pelo direito civil, hoje sofrem o influxo dos princípios do direito público, emanados predominantemente das decisões proferidas pelos órgãos de jurisdição constitucional” (recurso extraordinário 201.819-8, rel. min. Ellen Gracie). 

__________

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliese, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006.

NOVO CÓDIGO CIVIL: Exposição de Motivos e Texto Sancionado. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002.

TEPEDINO, Gustavo. Marchas e contramarchas da constitucionalização do direito civil: A interpretação do direito privado à luz da Constituição Federal. Synthesis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 15-21, 2012. 

O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

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A falácia do excesso de recursos https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/a-falacia-do-excesso-de-recursos/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/a-falacia-do-excesso-de-recursos/#respond Tue, 30 Apr 2019 20:53:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=29 Arystóbulo de Oliveira Freitas, terça-feira, 30 de abril de 2019

No curso dos últimos 30 anos, desde a criação do STJ, deparamo-nos com a democratização do acesso à Justiça e com a busca incessante da uniformização e homogeneização dos julgamentos dos demais tribunais federais e estaduais.

O presente texto pretende abordar uma questão que vem sendo discutida nos meios forenses, a respeito dos recursos perante os tribunais superiores. Considerando o foco do texto no STJ, não abordaremos o tema nos demais tribunais superiores.

Há um discurso que vem sendo repetido diuturnamente, de que há muitos recursos em nosso sistema jurídico e que esses recursos dariam causa à morosidade da Justiça. Em acréscimo, deparamo-nos com afirmações vagas e imprecisas, que buscam em outros sistemas jurídicos, notadamente aqueles informados pela common law, as respostas para os problemas detectados em nosso sistema jurídico processual brasileiro.

Todavia, se nós examinarmos essa questão com a atenção e cuidado necessários, certamente a conclusão será díspar do que até agora vem sendo apresentado.

Nosso sistema processual, que, desde a década de 1990, vem sendo alterado e aperfeiçoado,1 pode ser entendido, de uma forma geral, nas palavras do jurista Cândido Rangel Dinamarco (2016, p. 300), com as características de

“Um processo sincrético (sem um processo de execução por título judicial, separado do processo de conhecimento), fortemente comprometido com os princípios constitucionais, empenhado na universalização da tutela jurisdicional inclusive mediante a oferta de tutela coletiva e absorção de litigantes de pequeno poder econômico, com grandes aberturas para a cooperação entre o juiz e as partes e para o emprego dos meios alternativos de solução de conflitos, dispondo o juiz de significativos poderes em matéria de iniciativa instrutória e para a efetividade do processo, com tendência à aceleração da outorga da tutela mediante medidas provisórias, sendo relativamente rígido e atenuadamente oral o procedimento e dispondo as partes de amplas possibilidades de acesso aos órgãos superiores da jurisdição mediante a interposição de recurso e propositura de ação rescisória (pluralidade dos graus de jurisdição) – eis os traços centrais responsáveis pela configuração do modelo atual do processo civil brasileiro”.

Por outro lado, sabe-se que a aplicação de institutos e/ou procedimentos utilizados em outro sistema, notadamente relacionado à família da common law, muitas vezes contraria a própria estrutura de nosso processo civil, como também a cultura jurídica de nosso país.2 Para que seja feita qualquer comparação entre institutos relacionados às famílias da common law e da civil law (informado pela cultura jurídica romano-germânica), há de se levar em conta uma multiplicidade de fatores, que, via de regra, são desconsiderados, tais como a estrutura de federação ou confederação do país, os usos e costumes, a tradição jurídica da sociedade etc.

No que interessa ao presente texto, o sistema processual recursal, que fora aperfeiçoado e modificado no curso dos últimos 20 anos, contou com importantes adequações à realidade de nossa praxis forense, tais como, por exemplo, a abreviação de trâmite do agravo de instrumento e restrição às hipóteses de seu cabimento; redução das hipóteses de efeito suspensivo para recursos; eliminação do recurso de embargos infringentes; criação de múltiplas hipóteses de fixação de multa por interposição de recursos manifestamente infundados; incentivo à conciliação; e ampliação do sistema de precedente judicial; tudo a dar mais agilidade e efetividade à atividade jurisdicional.

Além disso, o estímulo e esforços dedicados à implantação do processo eletrônico em todo o país vêm trazendo importantes avanços no acesso à Justiça e na celeridade.

Nosso sistema recursal prevê multiplicidade jurisdicional. Ou seja, além da obrigatória e necessária observância do duplo grau de jurisdição, garantido constitucionalmente, há parcial superposição de jurisdição para os recursos dirigidos aos tribunais superiores,3 com os estreitos limites constitucionalmente fixados para tal.

O duplo grau de jurisdição garante ao cidadão que a decisão desfavorável a que foi submetido será revista por um tribunal ou colegiado. E a superposição de jurisdição pelos tribunais superiores (por meio de recurso especial e extraordinário, quando se trata de STJ e Supremo Tribunal Federal (STF), respectivamente), garante a coerência e unidade na aplicação do Direito, nas diversas unidades da Federação.

A Constituição de 1988 trouxe para o sistema processual o recurso especial e o STJ. Até então, o STF era o tribunal superior responsável por todos os recursos que decorriam de violação à Constituição Federal e a leis federais.

À época da criação do STJ, havia um intenso debate a respeito da inviabilização das atividades do STF, em decorrência do excesso de processos a ele submetidos. Antes disso, já afetado pelo grande número de feitos a ele submetidos, o STF havia adotado a denominada “arguição de relevância da questão federal” (foi alterado o art. 308, do RISTF, por meio da emenda regimental 3, em 1975; essa alteração foi reproduzida na emenda constitucional 7, de 1977). Esse instituto somente foi banido do sistema recursal com a promulgação da Constituição de 1988.

A Constituição de 1988 trouxe para o sistema processual o recurso especial e o STJ

Essa verdadeira barreira de entrada para os recursos dirigidos ao STF foi resgatada pelo STJ, no início dos anos 2000. Em decorrência disso, a então deputada federal Rose de Freitas recebeu os subsídios do STJ para dar início à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 209/12, que prevê o acréscimo de um parágrafo ao art. 105 da CF, o qual cria a barreira denominada “relevância de questões de direito federal infraconstitucional”, sem a presença da qual não será admitido o recurso especial.

A PEC 209 foi aprovada em dois turnos na Câmara Federal, tendo adotado, no Senado Federal, a numeração PEC 10/17. No mês de fevereiro de 2019, foi aprovada, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal o teor da PEC, restando, agora, a votação em dois turnos, no Plenário do Senado.

Significa dizer que, brevemente, poderemos nos deparar, em repetição, com uma significativa barreira de acesso ao STJ, cuja denominação a ele atribuída é de “Tribunal da Cidadania”, denominação essa que decorre tanto da sua missão de homogeneização da jurisprudência nacional, considerando a multiplicidade de tribunais estaduais e federais em nosso país, como também da representatividade do acesso à Justiça.

O que aconteceu, a partir da década de 1990, para que chegássemos a um ponto de quase esgotamento da capacidade de julgamento dos ministros? A ampliação do acesso à justiça e a criação do STJ, aliadas a repetidas ilegalidades praticadas por governos pretéritos, fomentaram a migração dos recursos, antes concentrados nos tribunais estaduais e federais, aos tribunais superiores, notadamente ao novel STJ.

Com 33 ministros, não demorou muito para que se esgotassem as capacidades de rápida resolução dos conflitos, geradores de atrasos na prestação jurisdicional.

Esse problema foi combatido, por iniciativa dos ministros, por meio da denominada “jurisprudência defensiva”4 (negativa de seguimento a recursos com base na interpretação ampliativa da lei processual).

Nesse contexto, é usual que seja divulgado, em eventos jurídicos, entrevistas com profissionais do Direito e também com pessoas sem formação jurídica, que alardeiam conjecturas falaciosas, como, por exemplo, a afirmação de que os advogados abusariam do uso de recursos, e isso estaria causando o atraso na prestação da jurisdição. Acrescente-se a isso a alegação de alguns profissionais a respeito da comparação, sem qualquer preocupação científica, com outros sistemas jurídicos, notadamente da common law.

Com relação a isso, apresentamos, nesse texto, algumas conclusões que, apesar de não constituírem novidade para os profissionais do Direito, resgatam questões que deixam de ser abordadas na avaliação do nosso sistema recursal e da importância de sua valorização e mesmo crítica.

Em primeiro lugar, o nosso sistema recursal, que, repita-se por importante, vem sendo aprimorado no curso dos últimos 20 anos, não apresenta qualquer indevido estímulo à impugnação de decisões judiciais (no novo CPC foram inseridas hipóteses de aplicação de multa por recursos incabíveis – arts. 1.021, § 4º; 1.026, §§ 2º e 3º), mantendo, porém, aberto o caminho para a revisão e/ ou atualização da jurisprudência.

O sistema de precedentes judiciais, expressa e amplamente adotado pelo novo CPC (arts. 926, 927, 976 a 987) valoriza a atividade jurisdicional de nossos tribunais, inclusive os superiores, e confere segurança jurídica aos jurisdicionados, confiantes na aplicação da jurisprudência. A inobservância do precedente legitima o jurisdicionado inclusive a apresentar reclamação constitucional, conforme previsto nos arts. 985, § 1º, e 988, inciso IV, ambos do CPC.5

Todavia, e isso demonstra o paradoxo que enfrentamos, recente pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (divulgada em janeiro de 2019, denominada Quem somos, a magistratura que queremos6), apresentou a conclusão de que 55% dos magistrados brasileiros não concordam com a aplicação de súmulas e precedentes, pois, no seu entendimento, representariam ofensa ao princípio da independência da magistratura.

Por outro lado, e não menos importante, os dados e números apresentados anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (Justiça em Números7) demonstram que: (a) grande parte do número de processos pendentes de julgamento ou em trâmite é de execução fiscal (39% dos casos pendentes e 91,7% de taxa de congestionamento); e (b) o Poder Público brasileiro (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e empresas públicas) constitui a grande maioria dos litigantes.

Ora, pelos números constantes desse último estudo, mais da metade dos 80 milhões de processos se refere a execuções fiscais e processos que envolvem o Poder Público.

Assim, a análise do sistema recursal e da necessidade, ou não, de qualquer alteração que modifique ou restrinja direitos do jurisdicionado somente pode ser promovida com base nos elementos que compõem o quadro completo dos processos em curso perante o Poder Judiciário, de forma geral, e os tribunais superiores de forma específica.

Não bastassem os elementos anteriormente identificados como evidências a alertarem o jurisdicionado e os demais partícipes do universo forense, para que não se atribua ao sistema recursal brasileiro e/ou ao profissional da advocacia a responsabilidade pela ausência de celeridade processual, há outras questões, não menos importantes, que demonstram, à saciedade, a relevância e eficiência do nosso sistema recursal.

Podemos, a título de exemplo, fazer referência a processos que contaram com mais de 8 recursos para que, ao final e no julgamento de embargos de divergência, no âmbito do STJ, fosse acolhido o pleito do recorrente.8

Os recursos de Embargos de Divergência interpostos perante o STJ,  793.323-RJ, 852.103-SP e 1.449.539-PE, foram, todos, acolhidos, após a interposição de 7 a 9 recursos, desde tribunais federais/estaduais até os embargos de divergência.

A necessária e constante atividade jurisdicional possui relação direta com o sistema recursal.

O resultado destes recursos alterou a jurisprudência do STJ em temas de grande repercussão, como honorários de sucumbência após adesão ao Refis, prescrição de ato de reenquadramento de funcionário público, cobrança de coparticipações em internações psiquiátricas.

Ou seja, a necessária e constante atividade jurisdicional, que provoca, em diversos temas, a revisão ou atualização da jurisprudência, possui relação direta com o sistema recursal, sendo certo que a interposição de um número considerável de recursos constitui natural decorrência desse sistema, não implicando, por óbvio, a ausência de celeridade nos julgamentos, o que pode ocorrer em decorrência de outros inúmeros fatores.

Por outro lado, as evidências apresentadas pelo CNJ, em seu estudo anual, demonstram que há necessidade da adoção de providências para viabilizar a melhoria e eficiência da prestação jurisdicional pelos tribunais superiores, sendo que, adiante, apresentaremos algumas sugestões a título de contribuição.

Ora, se mais da metade do acervo processual de nosso país é concentrado nas demandas que envolvem o setor público, inclusive por meio das execuções fiscais, parte da solução para a celeridade da Justiça envolve necessariamente esse tema.

Mas, de outro turno, não podemos ceder a soluções simplistas, que ignorem ou violem basilares princípios constitucionais, como o devido processo legal e contraditório.

Assim, algumas soluções para a melhoria dos índices de gestão dos processos na Justiça brasileira (índice de congestionamento, por exemplo) podem ser resumidas como adiante exposto.

A alteração das regras de atuação da advocacia pública, admitindo que o profissional possa adotar a decisão de não recorrer diante de teses que tenham sido rejeitadas em tribunais superiores, vem sendo discutida nos últimos anos. A obrigatoriedade de o profissional da advocacia pública interpor recursos à exaustão, mesmo quando o assunto já conte com jurisprudência contrária, certamente contribui para o excesso de recursos perante os tribunais superiores. Essa obrigatoriedade engessa a atuação do profissional da advocacia pública, sob o risco, inclusive, de ser-lhe imposta pena disciplinar.

Revisão das normas referentes à execução fiscal, propiciando a realização de acordos e parcelamentos pelos representantes das instituições públicas; a prática de atos extrajudiciais, que não impliquem, por óbvio, penhora ou restrições patrimoniais poderiam ser adotados para que o Estado-juiz não se sobrecarregasse com questões meramente burocráticas.

À guisa de conclusão, pode-se constatar que a atribuição de responsabilidade aos profissionais da advocacia ou ao sistema recursal, por falta de celeridade dos processos, implica um equívoco na avaliação das diversas dimensões da prestação jurisdicional.

À guisa de conclusão, pode-se constatar que a atribuição de responsabilidade aos profissionais da advocacia ou ao sistema recursal, por falta de celeridade dos processos, implica um equívoco na avaliação das diversas dimensões da prestação jurisdicional.

A avaliação da ausência de celeridade no trâmite do processo, nas diversas órbitas de prestação jurisdicional, deve certamente levar em consideração o avassalador percentual de ações que envolvem o Poder Público, inclusive as ações de execuções fiscais.

As barreiras impostas pelo STJ, decorrentes da denominada “jurisprudência defensiva”, implicaram a rejeição de centenas de milhares de recursos, fato esse que será certamente potencializado com a provável promulgação da PEC 10/17, que cria mais uma barreira para o julgamento de recursos pelo STJ, consistente na arguição de questão federal.

Essas graves restrições à recorribilidade de decisões dos tribunais federais e estaduais poderão alterar significativamente o papel do STJ (“Tribunal da Cidadania”) na uniformização da interpretação da lei federal, sua missão constitucionalmente estabelecida.

No curso dos últimos 30 anos, desde a criação do STJ, deparamo-nos com a democratização do acesso à Justiça e com a busca incessante da uniformização e homogeneização dos julgamentos dos demais tribunais federais e estaduais.

Para que não presenciemos ou até mesmo participemos de um retrocesso nessas importantes conquistas, entendemos imprescindível a soma de esforços dos profissionais que participam dessa relação jurídico-forense (advocacia, magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública) para que possam, juntos, rediscutir os diversos temas que influem diretamente na maior eficiência da prestação jurisdicional.

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1 Podemos citar, a esse respeito e sem pretender exaurir o emaranhado de leis que compuseram a reforma fragmentada do Código de Processo Civil (CPC), as leis 8.950/94 (altera recurso extraordinário, especial, ordinário constitucional e embargos de divergência); 9.139/95 (alterações do recurso de agravo),  9.756/98,  10.352/01, 11.187/05, 11.276/06.

2 Vale a esse respeito transcrever trecho da obra do professor Guido Fernando Silva Soares (1999, p. 57): “Enfim, na comparação dos sistemas da família romano-germânica dos direitos e da Common Law, reafirme-se o postulado de que não é permitido, em Direito Comparado, estabelecerem-se juízos de valor quanto a este ou aquele sistema, uma vez que ambos são criaturas da cultura e da civilização e plenamente cumprem com as funções para as quais o engenho humano os criou: proteger e salvaguardar a sociedade humana. Se os juristas e advogados da família romano-germânica olham com certa emulação e adequação dos case laws à realidade, advogados e juristas da Common Law sentem uma certa nostalgia, em face da harmonia e racionalidade dos códigos”.

3 Essa superposição é explicada pelos juristas Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (2008, p. 202) da seguinte forma: “Como órgão de superposição (nessa condição ao lado do Supremo), o STJ não diz rigorosamente a última palavra sobre todas as causas, mas a sua situação sobranceira às Justiças o qualifica como tal. Embora em situações diferentes, tanto quanto o Supremo ele julga causas que já hajam exaurido todas as instâncias das Justiças de que provêm […] Como defensor da lei federal, compete-lhe julgar recursos interpostos contra decisões dos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais, que contrariem ou neguem vigência a tratado ou lei federal (art. 105, inc. III, letra a). Como unificador da interpretação do direito, cabe-lhe rever as decisões que derem à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal (art. 105, inc. III, letra c)”.

4 A Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) promoveu, no dia 20 de setembro de 2018, encontro entre juristas para discutir a denominada “jurisprudência defensiva”, com a participação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Seccional Paulista da OAB, do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) e do Movimento em Defesa da Advocacia (MDA). Foi dado início a um intenso movimento contra a “jurisprudência defensiva”, reconhecendo a violação à CF e às normas de Direito Processual Civil daí decorrentes.

5 A importância dos precedentes já houvera sido ressaltada pelo ilustre professor e ex-presidente da AASP doutor José Rogério Cruz e Tucci, na alentada obra Precedente Judicial como fonte de direito, antes da edição do novo CPC (2004, p. 304): “Compreende-se, assim, sem grande dificuldade, que o equilíbrio entre a eficácia vinculante do precedente judicial e a persuasão racional do juiz representa, sem dúvida, fator essencial para uma eficiente distribuição da justiça”.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui (Justiça em Números 2018: ano base 2017/Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2018).

8 O empenho do profissional da advocacia já era reconhecido nas origens do exercício da profissão, como bem leciona Hélcio Maciel França Madeira, doutor em Direito Romano pela Universidade de São Paulo (USP) (2002, p. 77): “O advogado se obriga, conforme consta do juramento oficial, a estudar a causa ‘com toda sua sabedoria e com todo seu zelo, não deixando de se esforçar em nada na medida que lhe seja possível’”.

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CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

DINAMARCO, Cândido R. Instituições de direito processual civil. v. I. 8. ed., rev. e atual. segundo o Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016.

MADEIRA, Hélcio Maciel França. História da Advocacia, origens da profissão de advogado no direito romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law: Introdução ao direito dos EUA. 1. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.

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Autogoverno do TJ/SP https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/autogoverno-do-tj-sp/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/autogoverno-do-tj-sp/#respond Mon, 25 Feb 2019 20:53:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=27 Arystóbulo de Oliveira Freitas, segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Espera-se que as instituições não se dirijam a um caminho burocrático e tortuoso, buscando, ao contrário, como é desejado nesse tipo de conflito, a via da resolução amigável da pendência.

Causaram estranheza e perplexidade os eventos ocorridos no final da última semana, em que o Tribunal de Justiça de São Paulo informou, na sua página inicial da internet, com repercussão em toda mídia, a contratação bilionária da empresa Microsoft para a transformação digital do Tribunal, incluindo novo sistema de tramitação processual. Mas não foi só!

O Conselho Nacional de Justiça, de ofício, e após deliberação do Conselheiro Marcio Schiefler Fontes, determinou à administração do Tribunal de Justiça de São Paulo que se abstivesse de “praticar qualquer ato tendente a concretizar ou dar execução à contratação noticiada antes de assim autorizado pelo Conselho Nacional de Justiça”.

Diante de tais graves fatos, não há como os partícipes da atividade forense se calarem.

Em primeiro lugar, não obstante a qualidade e competência dos ilustres Conselheiros do CNJ, que vêm prestando relevantes serviços à sociedade, não nos parece, com o devido acatamento, que uma notícia veiculada em sítio da internet, repercutindo declaração do presidente do maior Tribunal de Justiça do Brasil, e quiçá das Américas, possa justificar uma medida unilateral e abrupta. Isso porque, de um lado, considerando inclusive a presunção de legalidade e boa-fé dos atos administrativos, nada impedia a prévia notificação dos gestores do Tribunal para que explicassem as medidas que estão sendo adotadas, até mesmo em homenagem ao princípio constitucional do autogoverno de nossos Tribunais (artigo 99 da Constituição Federal). Nesse sentido, não se mostra crível que os elevados valores da contratação, pelo Tribunal que responde por mais de 40 milhões de processo, sejam, por si só, razão para tal deliberação.

De outro turno, relevante salientar que as decisões administrativas dos Tribunais Estaduais, tanto quanto dos Federais, não são dependentes de autorizações do CNJ, na medida em que essas Cortes de Justiça devem se pautar pela observância dos limites da atuação, livre e altaneira, pontuados em nossa Constituição. Aliás, já se discutiu que somente as regras gerais do processo eletrônico devem ser centralizadas e unificadas, com o objetivo de propiciar a interoperabilidade do sistema. No mais, cabe a cada Tribunal regulamentar o seu sistema e procedimentos. Isso decorre, inclusive, da estrutura de nossa Federação, cujo rol de competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios vem estabelecido com significativa especificidade em nossa Constituição.

Com relação ao Tribunal de Justiça de São Paulo, apesar da autonomia que lhe é atribuída constitucionalmente, além da amplitude de atuação que decorre do princípio constitucional do autogoverno, parece-nos, com a devida vênia, que uma alteração do porte daquela que vem sendo divulgada justificaria a prévia discussão com os partícipes da atividade forense (Advocacia, Ministério Público, Defensoria Pública) para que, longe de criarem óbices, possam prover subsídios e sugestões para que a modernização pretendida não provoque qualquer impacto negativo nos jurisdicionados, além da desejada e necessária adesão ao projeto em gestação.

Em apertada síntese, espera-se que as instituições não se dirijam a um caminho burocrático e tortuoso, buscando, ao contrário, como é desejado nesse tipo de conflito, a via da resolução amigável da pendência, podendo, tal como ocorreu à época da implantação do processo eletrônico no TJ/SP, com a presença de instituições representativas da advocacia, dentre elas a Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, ser realizada uma audiência de conciliação para que a questão seja dirimida rapidamente.

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A advocacia no banco dos réus https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/a-advocacia-no-banco-dos-reus/ https://afreitas.com.br/premios-e-publicacoes/a-advocacia-no-banco-dos-reus/#respond Tue, 20 Jun 2017 20:52:00 +0000 https://afreitas.com.br/novosite/?p=25 Por Arystóbulo de Oliveira Freitas, terça-feira, 20 de junho de 2017

Os profissionais devem atuar, inclusive junto às instituições representativas da advocacia, com vistas a demonstrar aos julgadores que não é possível admitir-se a repetição de honorários recebidos, para a hipótese de rescisão de julgado.

Causou inquietude e perplexidade aos profissionais da advocacia a recente decisão da 3ª turma do STJ (REsp 1.651.057), por meio da qual foi deliberada a legitimidade da inclusão do procurador da parte vencedora em processo, cuja decisão transitada em julgado seja desafiada em ação rescisória, pelo simples fato de ter sido fixada verba de sucumbência, reconhecendo, assim, a responsabilidade do profissional pela devolução do valor de honorários recebidos.

Os honorários advocatícios de sucumbência foram reconhecidos como verba alimentar, no âmbito do STF, por meio da súmula vinculante 47, que dispõe: “Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza”.

A irrepetibilidade de verba alimentar está sedimentada em nossa jurisprudência, sendo que a exceção definida pela 1ª seção do STJ (REsp 1.401.560) refere-se à reversão de antecipação de tutela na concessão de benefícios do INSS, qualificados como verba alimentar, quando o titular da verba sabe, de antemão, que aquele recebimento é provisório. Ou seja, a irrepetibilidade de verba alimentar constitui a regra a ser observada.

Ora, se os honorários são verbas de natureza alimentar, que têm como característica fundamental a irrepetibilidade, salvo quando recebidas em caráter provisório (antecipação de tutela), a pretensão da repetição de tal verba é, antes de tudo, ilegal e contrária ao postulado da indispensabilidade do profissional da advocacia para a administração da Justiça, mormente se o valor correspondente a sua remuneração pode ser retirado pelo próprio Poder Judiciário após anos do exercício profissional.

Nem se argumente que se trata de vedação ao enriquecimento sem causa, como vem sendo alardeado em alguns textos, pois, não se deve esquecer, o advogado somente faz jus a essa remuneração após diversos anos de trabalho, muitas vezes superiores a uma década. A rescisão de um julgado não elimina ou reduz o esforço hercúleo dos profissionais da advocacia para alcançarem o final da via crucis processual. As inúmeras peças processuais, audiências, perícias, recursos, sustentações orais não podem ser simplesmente desconsideradas, como se a rescisão de um julgado tivesse o condão de anular toda a atividade forense já exercida.

Além disso, a questão do mínimo existencial deve ser analisada com muito cuidado; compõem o conteúdo desse “mínimo” os custos e investimentos do profissional com seu escritório, funcionários, advogados, estagiários, cursos de aperfeiçoamento, biblioteca, material de escritório etc….tudo a exigir, na maior parte das vezes, a antecipação de gastos pelo profissional, aguardando o recebimento de um honorário de valor expressivo, que inclusive o auxilie na época da aposentadoria. Além disso, não se pode ignorar a real perspectiva do profissional em buscar melhoria patrimonial (compra da casa própria, viagem com a família, educação para os filhos etc).

O advogado, profissional liberal, não é funcionário público, não recebe aposentadoria, não recebe diferenças salariais, não tem garantida sua remuneração mensal, depende dos honorários contratados com o cliente, que, no caso de atuação contenciosa, incluem a verba de sucumbência. Não raro o valor da sucumbência é compensado pelo cliente para compor a contratação total dos honorários.

Ademais, o julgado em questão se aplica igualmente aos advogados públicos, que participam de verbas de sucumbência, sendo, a partir de agora, candidatos a serem incluídos no polo passivo de ações rescisórias.

Dessa forma, em face da gravidade do tema em questão, os profissionais devem atuar, inclusive junto às instituições representativas da advocacia, com vistas a demonstrar aos julgadores que não é possível admitir-se a repetição de honorários recebidos, para a hipótese de rescisão de julgado.

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